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■ 29/04/2017 • Língua • 4366 hits • 0 comentários ⇣
Este artigo é uma reflexão sobre o que seria de fato uma linguagem correta e qual a nossa relação com as pessoas em virtude disso. Antes de iniciá-lo, porém, talvez seja interessante tentar definir, primeiro, a diferença entre língua e linguagem.
• Língua seria uma forma de comunicação organizada dentro de um padrão utilizada por um grupo humano (geralmente localizado em uma região ou país) e de entendimento comum para todos os indivíduos pertencentes a ele, e que se apresenta de forma verbal - ou seja, de maneira escrita ou falada. Como exemplos de língua temos o latim (língua morta), o chinês, o português de Portugal e o português brasileiro.
• Linguagem seria um recurso de comunicação que pode ser verbal, sonoro, gestual ou visual, sendo possível ter um caráter restrito e amplo ao mesmo tempo, como por exemplo, a linguagem de sinais (LIBRAS), as linguagens visuais como a sinalização (pictogramas e desenhos) ou as linguagens de programação de software (computador). Restrito por poder ser utilizado por apenas alguns indivíduos de um grupo que fala a mesma língua (brasileiros que se comunicam em LIBRAS, espanhóis que escrevem em linguagens de programação) e amplo por poder ser entendido por indivíduos de diversas outras culturas (desenhos e símbolos que podem ser interpretados da mesma forma em qualquer local em que sejam mostrados).
Alguns autores entendem linguagem como uma coisa exclusiva de humanos, o que eu discordo. Acho que por seu caráter abstrato e por possibilitar ser representada por meios tão diversos, a linguagem também faz parte da vida dos animais. Sua inteligência permite que eles se comuniquem entre si através de sons, gestos, movimentos e o que mais for característico e possível para cada espécie. Mas quando falamos de linguagem como coisa humana, a entendemos como algo padronizado, algo que possui uma forma única e não dotada de uma abstração mais explícita. Na verdade, nossa visão é muito mais em cima de língua (particularmente a escrita) do que de linguagem. Pessoas que não são da área de comunicação não estudam isso e não fazem muita diferenciação de uma sobre a outra, pois para elas o que interessa mesmo é se comunicar e não os detalhes que permeiam o processo.
Não obstante, o conhecimento menos profundo da população em relação à sua própria língua ou até a línguas, de forma geral, acaba gerando uma ideia imprecisa e uma consequente discriminação em relação a quem teve pouco acesso ao estudo formal e não se mostra capaz de se comunicar (escrever ou até falar) dentro da chamada Norma Padrão ou Norma Culta. A Norma Padrão é aquela tida como a forma correta de se expressar, seja por meio da fala, seja por meio da escrita, mas, principalmente, através da escrita, e é a norma defendida pela Gramática. Mas é, também - por incrível que pareça -, a maneira de escrever que nem todos sabem fluentemente mas que permite a um apontar o erro do outro quando se percebe aquele que é do seu conhecimento. Isso é engraçado porque a informação que um tem nem sempre coincide com a informação do outro, mas nos achamos numa posição superior porque em alguma situação temos conhecimento suficiente para poder criticar.
Exemplos de erros escritos bastante comuns:
• Escrever horas fora do padrão: "12hs", "13:00h"
• Utilizar próclise no início de uma oração escrita: "Me ligue amanhã!"
• Escrever frases com pontuação incorreta: "Bom dia Fulano tudo bem ?"
• Escrever termos como "segue em anexo"
• Trocar tempo de verbo numa oração: "Maria estar em casa hoje"
• Colocar crase no lugar errado: "Fui à São Paulo"
Estes exemplos têm pelo menos um motivo para estarem incorretos, porém nem todas as pessoas percebem o porque em todos. Mas todas elas podem notar que, pelo menos, um desses seis itens está errado e apontar, pois quando se percebe algo que foge ao que seu conhecimento aceita como certo, se estranha. É lógico que isso é bem mais perceptível na língua escrita. Na língua falada temos muito mais liberdade, e nossa comunicação pode ser ajudada por recursos diversos como entonação da voz, expressão facial, dedução, gestos, alteração de timbre de voz, etc. Todos eles acabam por completar o processo da comunicação sem que seja necessário a gente se expressar utilizando as normas da Gramática.
A Gramática Normativa, contudo, é a nossa grande referência em como a gente deve se expor de uma maneira padronizada e, pode-se dizer, socialmente aceitável. Na dúvida, recorremos à gramática. Não é preciso pesquisas para perceber isso, mas a insegurança em se colocar na própria língua fica clara pela quantidade de pessoas que ficam nos perguntando sobre coisas que não deveriam ter dúvidas se tivessem mais estudo, e isso, na minha opinião, compreende a maior parte da população. As pessoas são deficientes na Norma Padrão e, quando são obrigadas a escrever, se denunciam. Isso vale para indivíduos de baixa, média e alta escolaridade (nível superior).
O interessante é que isso não prova que não saibam se comunicar. Entretanto, uma das coisas que demonstram que as pessoas conseguem se comunicar mesmo não tendo tanta afinidade com a Gramática Normativa é o fato de não terem afinidade com a Gramática Normativa. Porquê? Porque se precisassem tanto da Gramática, recorreriam a ela sempre - e, pela insistência, aprenderiam as maneiras formais. Mas como a comunicação do dia a dia não necessita tanto esmero, as pessoas se acomodam e vão se preocupar com as coisas de interesse mais imediato como seu salário, sua viagem, sua praia, sua festinha, suas compras, etc. E continuam se comunicando da forma como conseguiram aprender.
Mas antes que alguém possa achar que eu estou defendendo o estudo formal como única maneira possível de se estabelecer uma comunicação correta, eu aviso que este texto é justamente para questionar isso. Acho que a Gramática e os padrões formais definidos para cada língua são bastante importantes porque permitem uma referência sobre o que seria e o que não seria ideal na comunicação entre as pessoas. Em contrapartida, é bom ter em mente que a língua escrita propriamente dita e seus padrões apareceram muito tempo depois que as pessoas começaram a articular palavras. E a nossa comunicação do dia a dia é muito mais não escrita do que escrita. Como eu falei, se a gente considerar todos os recursos que utilizamos para podermos nos expressar, vamos ver que a escrita é apenas um deles e que é perfeitamente possível existir sem ela, como nos mostram os animais, que nascem, crescem, se relacionam e vão embora sem nunca ter escrito uma letra "A" mas que vivem suas vidas de forma plena como é permitido a cada espécie na natureza.
Ok, nós somos humanos e, além de não vivermos na natureza, temos mais recursos de inteligência, articulação vocal e capacidade de movimentos com as mãos que os animais não humanos. Por isso podemos explorar mais nosso conhecimento repassando-o para outras gerações e podemos, também, sofisticar nossas formas de comunicação estabelecendo os padrões que tanto defendemos através dos livros e das escolas. A defesa de nossas regras de comunicação verbal funciona como uma maneira de perpetuar a língua mas, incrivelmente também - apesar de nossa evolução social -, como uma forma de discriminação e de subjugo. O interessante é que essa discriminação pode acontecer de forma inconsciente - sem a gente perceber que a está praticando - e sem perceber também o quanto a gente pode estar errado em relação aos nossos julgamentos.
Cada linguagem tem que estar adaptada ao seu contexto. Isto é fato inquestionável porque, a todo momento temos que nos comunicar movidos por motivos diversos e com diferentes tipos de pessoas. Adaptamos o nosso falar e nossa escrita para que a passagem de informação aconteça sem falhas - e o fazemos automaticamente quando temos essa capacidade.
Exemplo simples de adaptação da linguagem, comparando fala e vestuário:
• Imagine uma pessoa que trabalha em alguma profissão que exija uma verbalização rebuscada, como um juiz. Juízes têm que saber escrever "bem" e também têm que ser formais no momento de um julgamento, pois eles precisam passar credibilidade e impor um certo respeito. E fazem isso através da fala, do gestual e do modo de se vestir. Juízes não costumam falar "E aí, galera, beleza?" quando estão numa audiência, fazendo o sinal de "legal" e, também, não vão lá vestidos de short e sandália.
• Porém, juízes são humanos. Eles não vivem o tempo inteiro num tribunal. Quando saem de lá vão para suas casas, abraçam a mulher, o filho, o cachorro, e trocam de roupa para se sentirem mais à vontade. Mas quando sentam no sofá, não ficam dizendo "Declaro aberta a sessão de cinema: vamos assistir a um lindo filme sobre contravenção penal. Sentem-se na sala e mantenham-se calados!". Eles se comunicam de maneira mais descontraída e apropriada ao momento.
• E como o juiz é humano, no final de semana ele vai à praia. Na praia ele não vai de toga e nem fica batendo o martelinho na cadeira pra pedir uma cerveja. Ele, possivelmente, vai de short e sandália, fica de sunga, bebe sua cerveja, come seu tira-gosto e, quando encontra algum amigo por lá, fala "E aí, cara, beleza?", algo que ele nunca falaria num tribunal.
• À noite esse mesmo juiz vai a uma festinha mais formal. Só que a esta altura, já passou em casa, tomou banho, trocou de roupa e foi - de carro próprio ou de táxi - se divertir, conversando com os amigos, falando bobagem e contando piadas - como qualquer pessoa normal - porém vestido de maneira mais séria e com gestual mais controlado do que como se estivesse na praia.
• Em seguida, vai para casa, toma banho, coloca um pijama, dá um tranquilo "Boa noite, meu bem" para a esposa e vai dormir.
Esse é apenas um exemplo fictício, mas foi só para ilustrar o quanto nós temos que nos adaptar a situações distintas e que exigem uma diferença em nossa maneira de se portar e de se vestir. O terno e o sapato bico fino que parecem corretos num tribunal, aparentam ridículos numa praia. Da mesma forma e de modo contrário, o short e a sandália que parecem ideais para uma praia, virariam motivo de chacota numa sessão de julgamento.
Assim também funciona a linguagem. Ela tem de se adaptar a cada situação, a cada contexto. Uma língua nunca pode permitir apenas um tipo de comunicação porque as situações em que ela é utilizada são diferentes, portanto, diferentes têm que ser as formas nas quais ela se encaixa. Mas você pode dizer que existe uma maneira que é a mais correta de todas. Não. Não existe uma única maneira correta. Existe uma maneira correta para cada situação. Não dá pra afirmar que a maneira mais correta é como um juiz sentencia, como eu escrevo este texto, como falamos no dia a dia, como nos cumprimentamos na praia ou como contamos uma piada. Todas estão corretas, para seus momentos, mas estão corretas. Da mesma forma que quando eu escrevo, escrevo de uma maneira e quando falo, falo de outra. Se eu, ou você, falássemos sempre da maneira como escrevemos, pareceríamos sempre formais. Da mesma maneira, se não formalizássemos quando escrevemos, não passaríamos credibilidade em algumas situações.
Quando contamos uma piada, às vezes, utilizamos algum trocadilho que é difícil até escrever, mas que para a piada, esse trocadilho, essa palavra nova que nunca ouvimos, se encaixa bem e alcança seu objetivo, que é o de provocar gargalhadas. Numa situação contrária, um padre num enterro nunca contaria uma piada. E, assim como o juiz do exemplo anterior não contaria piadas e nem diria "meus sentimentos" no tribunal, num show de mímica, a linguagem correta deveria ser a gestual e, numa música, poderia ser a poética.
Dessa maneira, quando falamos com uma pessoa de cultura mais simples, tentamos adaptar nosso linguajar (dentro da mesma língua) para uma forma que ela compreenda. Ela, dentro de seu ambiente social, se entende bem com seus demais, e se comunica numa linguagem diferente da nossa mas correta para seu ambiente. Outrossim, quando os portugueses (que falam a mesma língua que a nossa?) se comunicam entre si, achamos alguma coisa meio incompreensível nas palavras e na pronúncia deles. Isso porque, com o passar dos anos e em virtude das influências que a gente teve, nossa língua mudou, adquiriu novo sotaque, refez suas preferências e ficou diferente do português original - o de Portugal. Tanto que ao invés de falarmos, por exemplo, "estou a andar" (no infinitivo gerundivo), preferimos "estou andando" (no gerúndio), e é assim que nos entendemos, com nosso próprio linguajar. Os portugueses não podem dizer que estamos errados porque não falamos mais como eles, e os brasileiros não precisam ficar insistindo nesse revival de que temos que continuar falando igual a Portugal. Até aqui dentro do Brasil, inclusive, nós temos nossos sotaques diferenciados, nossas gírias e palavras que só funcionam em determinados locais. Essas linguagens regionais não estão erradas, apenas estão adaptadas ao seu local de origem e funcionam bem para a população que se utiliza delas.
Por isso, quando nos comunicamos, temos que ter essa noção de diferenciação em nossa linguagem para que não fiquemos condenando quem fala diferente da gente. Pessoas que falam de forma diferenciada (ou escrevem com erros) não são piores do que nós. Apenas não estão instruídas o suficiente na língua e isto pode se dever a dois fatores: ou não tiveram oportunidade de acesso ao estudo formal ou, simplesmente, esse estudo formal foi deficiente e essas pessoas não cobraram de si mesmas posteriormente. Nesse caso, dá pra entender porque alguém que tem um bom cargo numa empresa e possui nível superior, peca tanto ao passar um simples e-mail. Estudou seu curso, aquele que lhe geraria uma melhor colocação profissional sem, ao mesmo tempo, corrigir suas deficiências na língua formal, já que iria se graduar do mesmo jeito.
Essas deficiências vêm desde a infância e, depois que crescem, as pessoas passam a ter outras preocupações e não se empenham mais em rever suas falhas linguísticas. Uma coisa que deveria ser obrigação - falar e escrever bem a forma padrão de sua língua - acaba ficando em segundo plano, mesmo com a facilidade de acesso a sites e blogs sobre língua portuguesa que temos à mão através do computador e dos smartphones. As coisas nesse sentido melhoraram bastante, portanto, não deixa de ser verdadeiro afirmar que (para MUITAS pessoas), não se educa melhor quem não quer. Para enfrentar uma redação de vestibular, uma palestra ou uma entrevista de emprego as pessoas poderiam se empenhar mais, mas acabaram dominadas por uma palavrinha de oito letras chamada "preguiça". E como isso dificilmente vai mudar, acho que nosso sistema educacional, poderia ser mais eficiente para nos possibilitar desde cedo essa "inteligência", essa capacidade da gente poder se colocar da maneira ideal em diferentes situações, sem tropeços na comunicação e, ao mesmo tempo, permitir que a gente compreenda esse desnível no uso da linguagem de pessoas de origem diferente da nossa e sem alimentar esse preconceito de achar que elas têm o dever de falar e escrever da mesma forma que a gente sabe, mesmo que a gente não saiba tanto assim, mas achando que sim e se sentindo no direito de condená-las por causa disso.
Referências:
Estudo prático - Língua, linguagem e fala e suas diferenças
Português UOL - Língua e fala
Simplesmente Português - Língua e linguagem - diferença
Nevesco25 - Língua e linguagem
Livro A Língua de Eulália - Marcos Bagno - 17ª edição - 2015
Livro Preconceito Linguístico - Marcos Bagno - 56ª edição - 2015
Palavras, pessoas e patrulhamento linguístico. Quem discrimina quem?